domingo, 24 de agosto de 2014

Psicanálise de Freud: Doutrina Religiosa Contemporânea


[Nota do editor: Texto originalmente publicado no site Montfort e recuperado via Wayback Machine]

PERGUNTA
Nome:José
Enviada em:22/04/2005
Local:Salvador - BA,
Religião:Católica
Idade:31 anos
Escolaridade:Superior concluído

Caríssimo Prof. Orlando,

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Primeiramente, gostaria de elogiar a sua qualidade argumentativa e seu empenho na defesa da fé. O que não seria possível fazer sem conhecimento e discernimento.
Diante da disseminação da psicanálise e estudos afins, em muitas lugares contam-na como verdade legitimada. Por exemplo, é comum, já, em muitos seminários da nossa Igreja, o uso dessas terapias como forma de ajudar o candidato ao sacerdócio a superar suas dificuldades de ordem emocional e levá-lo a uma decisão amadurecida. Pergunto:
Existem conflitos entre essa teoria e o que ensina a Santa Igreja? Não teríamos meios suficientes na própria Igreja, sem que precisássemos apelar para estes caminhos?

Conto com suas orações, na certeza que o Sr já conta com as minhas.

Obrigado,

Fraternalmente,

José Costa

RESPOSTA

Prezado José Costa, Salve Maria!
    Mesmo que no começo de seu trabalho Freud tenha sido desacreditado, seu nome foi posteriormente consagrado. Assim, a rápida adesão à psicanálise tornou-se um assunto de interesse para diversos autores. Webster (1999) escreve com a intenção de “explicar porque um sistema psicológico cuja linguagem e conceitos podem a princípio paracer estranhos e inquietantes foram experimentadops por tantas pessoas como conhecidos e tranquilizadores” (p.11). O mesmo autor explica essa rápida adesão considerando a psicanálise como “uma reconstrução sutil, em forma contestadora e moderna, das mais antigas doutrinas religiosas e ideologias sexuais” (p. 21).
    Diversos autores escreveram sobre as possíveis aproximações da psicanálise com doutrinas religiosas e com o romantismo alemão do final do século XVIII. Segundo Webster (1999), um pastor protestante, Oskar Pfister, “cita a psicanálise como um evangelho de amor comparável ao pregado por Jesus” (idem p.20). O mesmo autor refere ainda que dois importantes psicanalistas, Erik Erickson e Norman O. Brown teriam apontado em alguns de seus trabalhos “semelhanças entre a visão da condição humana de Lutero e a encontrada na psicanálise” (idem p. 20). Outros importantes autores como Jacquy Chemouni e David Bakan trataram mais especificamente da influência da mística judaica sobre a obra de Freud. E Ellenberger aprofundou as relações entre o movimento romántico e a psicanálise.
    Sabemos, no entanto, que o protestantismo, o romantismo e o judaísmo possuem convergências, por serem movimentos gnósticos, opostos a doutrina católica. Tratando rapidamente do assunto, o gnosticismo concebe o mundo como obra de um Deus dialético (demiurgo) que, ao criar o universo, aprisionou na matéria a divindade, sendo necessário atingir esse conhecimento profundo, pois só assim a união da divindade seria restabelecida. Umberto Eco (1993) deixa claras essas questões:
    "(...) o Demiurgo dá vida a um mundo errôneo e instável, onde uma parte da própria divindade cai, como que na prisão ou no exílio. Um mundo criado por engano é um cosmos abortado" (idem, p. 42).
    Tratando mais precisamente da condição humana para a doutrina gnóstica, diz Eco:
    "O gnóstico vê a si mesmo em exílio no mundo, como vítima de seu próprio corpo, que define como uma tumba e uma prisão. Foi lançado no mundo, de onde precisa descobrir uma saída" (idem, p. 42).
    Para a doutrina gnóstica, a única possibilidade de libertação desse erro original é o conhecimento da centelha divina presente em cada criatura. Esse conhecimento não pode ser dedutivo, pelo contrário é intuitivo, pois a razão conhece a partir do mundo real e por isso superficial, logo é traiçoeira e mentirosa.
    É preciso entender com o coração, "o coração tem razões que a própria razão desconhece" (Pascal século XVII). Como escreve Mittner[1] (1977) tratando do pietismo, movimento místico fundado por Philipp Jacob Spenner, no século XVII, que influenciou diretamente o romantismo, "o homem deveria buscar a Deus no íntimo de seu coração. Deus falaria a cada pessoa através de seus sentimentos. A razão e a vontade deveriam ser combatidas, pois seriam causas de individualizações, e empecilhos, portanto, à fusão no todo Universal. Era preciso “reentrar” em si mesmo, e, para isto, era necessário combater as qualidades pessoais, egoístas, resistir ás imagens dos sentidos, fruto da multiplicidade ilusória da vida concreta."
Além disso, esse conhecimento seria redentor, pois é através dele que o homem pode voltar a divindade. “A gnose é um conhecimento absoluto, que salva por si mesmo ou o gnosticismo é a teoria da obtenção da salvação por meio do conhecimento.” [2]
    Até aqui apresentei superficialmente as idéias do hermetismo ou do gnosticismo clássico, que segundo Umberto Eco, "sobreviveram como um fenômeno marginal, entre os alquimistas e cabalistas judeus e no seio do tímido platonismo medieval" (ECO p. 39).  O autor vai além em sua viagem arqueológica. Coloca que a doutrina gnóstica deixou de ser marginal quando triunfou sobre o racionalismo dos escolásticos medievais, e desde então passou a fundamentar grande parte da cultura moderna.
    Agora, retomando parte da sua pergunta: “Existem conflitos entre a teoria psicanálitica e o que ensina a Santa Igreja Católica Apostólica Romana?”
    A resposta é longa, pois só existem conflitos! Escrevo os argumentos dentro de três temas, são eles:




"Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja "feliz" não se acha incluída no plano da criação."
 (Freud. Mal-Estar na Civilização.  p. 24)
        Em 1874, Freud e Silberstein inscreveram-se como estudantes de medicina e de jurisprudência na Universidade de Viena, neste mesmo ano começam a assistir aulas de filosofia de Franz Brentano, um ex-padre, darwinista, que ensinava Aristóteles, psicologia empírica, e as provas da existência de Deus.
        Freud tinha grande admiração por este professor, e principalmente pela clareza e precisão com que argumentava sobre as provas da existência de Deus. Porém, "o anseio do jovem transformara-se em desprezo. A rejeitada metafísica fora substituída por sua própria criação,  a metapsicologia. A metafísica podia provar a existência de Deus, e Freud não possuía o talento para refutar os argumentos de Brentano; a metapsicologia podia provar que o Deus de Brentano era uma criação de um protetor imaginário pela espécie humana" (RIZZUTO p. 154).
        A autora deixa claro que o jovem Freud rejeitava a existência do Deus Boníssimo, Sapientíssimo, Imutável, Eterno, Ato Puro, que criou o Universo dando a ele qualidades visíveis, reflexos de suas qualidades invisíveis e de grau infinito. "Não é necessária muita perspicácia analítica para supor que Deus e o demônio eram originalmente idênticos - uma figura única que foi mais tarde partida em duas figuras com atributos opostos (...). Assim, o pai, ao que parece, é o protótipo individual tanto de Deus como do Demônio." [3]       
        Concluímos, que, para Freud, Deus não criou o mundo num ato de amor, mas sim de castigo, portanto, "não há nenhum Deus, nenhuma natureza bondosa." (RIZZUTO p. 162). Para Freud o mundo e a humanidade seriam frutos do caos e do "acaso descuidado que provoca um instável sofrimento." (p. 162).
        Podemos recorrer à obra de Freud para compreendermos melhor este desalento de existir. Ao falar sobre técnicas para afastar o sofrimento, o pai da psicanálise, acaba por concluir: "Não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e habitualmente falha quando a fonte de sofrimento é o próprio corpo da pessoa." (FREUD. 1930 p. 29).
        A pergunta lançada por Freud depois de colocar a tecnologia como contrária aos efeitos benéficos da seleção natural também nos diz muito sobre o assunto. "Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias e tão cheia de desgraça que só a morte é por nos recebida como libertação?" (FREUD. 1930 p. 40).
        Como conseqüência ao seu ódio por Deus Criador, Freud despreza as criaturas, e principalmente o homem, que foi feito a sua imagem e a sua semelhança. Como confessa numa carta a Lou Andreas- Salomé:
        "uma certa indiferença pelo mundo. (...) Nas profundezas do meu coração, não posso deixar de me convencer de que meus queridos irmãos homens, com poucas exceções, são destituídos de valor." (WEBSTER p. 297). E ainda, como escreve, Freud, ao amigo e seguidor, o ministro protestante Oskar Pfister:
        "Não quebro demais a cabeça sobre o bem e o mal, mas tenho encontrado poucas coisas "boas" nos seres humanos em geral. Em minha experiência, a maioria deles é lixo, não importa se publicamente aceitam essa ou aquela doutrina ética, ou nenhuma ... Se formos falar de ética, aceito um ideal elevado do qual a maioria dos seres humanos que encontrei lamentavelmente se desvia.” [4]
        Diante dessas citações não é de se estranhar o ódio com que Freud se refere ao Deus Criador em "Homem dos Lobos", usa adjetivos como: "Deus-Porco" ou "Deus Esterco" ou de que"pensar na Santíssima Trindade sempre que via três monturos de excremento de cavalo ou de outro animal na rua." (RIZZUTO p. 163)
        Freud escolheu como marco da psicanálise o Domingo de Páscoa de 1886, data que abre seu consultório particular, "a escolha da data não foi um acidente; expressa o gosto de Freud pela provocação, que tinha como alvo os mortais vienenses e Deus imortal." (RIZZUTO p. 157). 
        Não é necessária uma análise muito apurada para concluirmos que o pai da psicanálise rejeita Deus e a Igreja Católica Apostólica Romana que o representa. Foi com este ódio e desprezo que Freud criou a metapsicologia e a terapia psicanalítica, almejando tomar o lugar de pastor do rebanho.
        Ou seja, "(...) não se pode entender a conquista do fundador da psicanálise se o tratarmos apenas como um cientista, um psicólogo, ou mesmo como o criador de uma pseudociência biológica; só se pode entendê-la, enfim, se a encararmos da maneira que, no fundo de seu coração, ele se via - como um messias e o fundador de uma nova religião" (WEBSTER p. 277 - negritos nossos).
          Uma citação de Max Graf comprova o caracter religioso e messiânico da doutrina freudiana, a frase descreve a famosa Sociedade das Quartas-feiras, que em 1908 transformou-se na Sociedade Psicanálitica de Viena. Para concluir, segue a frase:
          "Os encontros seguiam um ritual definido. Primeiro, um dos membros apresentava um trabalho. Depois serviam café preto e bolos, charutos e cigarros na mesa eram consumidos em grade quantidade. Após quinze minutos de intervalo social, reiniciava-se a discussão. A palavra final e decisiva era sempre proferida por Freud. Transpirava naquela sala a atmosfera da fundação de uma religião. O próprio Freud era seu novo profeta que fazia os métodos de investigação psicológica predominantes até então parecerem superficiais. Os discípulos - todos inspirados e convencidos - eram seus apóstolos. (...) Contudo, após o primeiro período onírico e a fé inconteste do grupo inaugural de apóstolos, chegou a hora em que se fundou a igreja. Freud começou a organizá-la com grande energia. Era sério e rigoroso nas exigências que fazia dos discípulos; não permitia qualquer divergência de sua doutrina ortodoxa." [5]
2. Psicanálise: Doutrina Religiosa Contemporânea
     Freud: cientista ou profeta?
          Bettelheim aponta erros fundamentais na tradução, para a língua inglesa, das obras de Freud, chegando a afirmar:  "Tornou-se evidente que as traduções inglesas dos escritos de Freud distorcem muito o humanismo essencial que impregna os originais." (BETTELHEIM p. 16). O mesmo autor prossegue dizendo: "Em vez de instalarem um profundo sentimento pelo que existe de mais humano em todos nós, as traduções tentam induzir o leitor a desenvolver uma atitude "científica" do inconsciente e de como este condiciona grande parte de nosso comportamento" (idem p. 17).
          Ao discutir sobre os termos que seriam mais adequados para exprimir as idéias expostas em alemão por Freud, Bettelheim acaba tratando de importantes questões dentro da psicanálise, focalizando, principalmente, a alma humana.
          Partiremos da própria palavra "psicanálise" na qual, segundo o autor, Freud sintetiza e explicita seu objeto de estudo. "Psicanálise" seria a combinação de duas palavras de origem grega.“"Pisque" é a alma - um termo repleto do mais rico significado, dotado de emoção, abrangentemente humana e não científica. "Análise", por seu lado, implica a composição de um todo em suas partes componentes, um exame científico." (BETTELHEIM p 24).
          A psicanálise seria, portanto, o estudo da alma humana. "(...) Foi a ênfase de Freud sobre a alma que tornou sua análise diferente de todas as outras." (BETTELHEIM p. 25). Essas afirmações justificam a importância de se conhecer o conceito de alma para Freud, pois só assim, compreenderemos verdadeiramente a metapsicologia e a prática clínica psicanalista.
         Parece prudente considerarmos, breviamente, alguns pontos levantados por autores e biógrafos sobre a pessoa, ou melhor, ao "tão venerado mestre", Sigmund Freud. Partiremos citando os autores que parecem ter influenciado o pai da psicanálise, visto a freqüência com que foram citados. Entre eles estão escritores e poetas como Dostoievsky, Nietzsche, Arthur Schnitzler, Shakespeare e Goethe. 
          Webster aponta como outro ponto importante, que contextualiza a psicanálise, o fato de que "(...) no final do século XIX, as "verdades" das religiões foram sendo cada vez mais desacreditadas, (...) começou a surgir uma aguda necessidade de teorias seculares da natureza humana." (WEBSTER p. 22). Dentre estas novas teorias seculares o autor aponta a psicanálise e a antropologia estrutural, como dois exemplos de doutrinas religiosas contemporâneas.
          Não podemos deixar de lado dessa "contextualização" o novo movimento judaico, representado pela "Bíblia de Philippson", que em muitos pontos parece concorde às doutrinas da psicanálise, principalmente no que diz respeito à idéia messiânica  de acreditar em uma geração de eleitos encarregada de disseminar pelo mundo o novo judaísmo, no caso da psicanálise, o auto-conhecimento salvador.  Essa nova geração, para ambos os movimentos, uniria a humanidade exaltando não as diferenças pessoais, mas buscando o segredo profundo, a essência da humanidade, que estaria encerrada em cada corpo, em cada homem.
          Talvez mais definitivas do que a influencia de tais doutrinas, tenham sido as expectativas da família com relação a Freud. Como aponta Webster, as palavras da dedicatória do livro sagrado feita por Jakob Freud ao seu filho "deixam claro que Freud era encarado pelo pai como "especial" não apenas de maneira mundana, mas também religiosa. Na verdade, o significado literal da dedicatória de Jakob Freud sugere que, ao menos em certo sentido, ele via o filho como tendo uma relação íntima com ninguém menos que o próprio Deus, uma relação que seria consumada por meio de sua carreira científica." (WEBSTER p. 53).  
          A história inicial do movimento psicanalítico reafirma essa colocação, uma vez que a imagem de "Freud como herói isolado, um messias solitário, lutando pela causa da verdade num mundo hostil" (WEBSTER p. 27) parece constante. Seguem algumas citações que sustentam essa colocação: "A história básica da psicanálise", escreve Trilling, "é a explicação de como ela evoluiu na mente de Freud, pois ele desenvolveu seus conceitos sozinho." Esta declaração de inocente confiança logo se intensifica quando Trilling continua e fala com admiração do "tom lendário" da vida de Freud, chegando mesmo a sugerir que ele, pelo seu exemplo pessoal, refutava a afirmação de W. B. Yeats de que " o homem tem de optar pela perfeição da vida ou da obra (...) Ele chegou a suas descobertas por meio do pensamento, que prosseguiu humilde e corajosamente. A humildade do cientista, sua submissão aos fatos, é uma coisa de que o cientista muitas vezes se vangloria, mas os fatos aos quais o próprio Freud se submeteu foram não só difíceis como humanos" (idem  p. 29).
          Bettelheim também parece concordar com essa imagem lendária de Freud, descreve-o como herói e salvador. “(...) O objetivo da luta empreendida por Freud durante toda a sua vida resume-se em ajudarnos a adquirir uma compreensão de nós próprios, de modo que deixássemos de ser impelidos, por forças que nos eram desconhecidas (...)". (BETTELHEIM p. 28). E ainda: "A história da Psique pode ter sido especialmente atraente para Freud porque ele teve de entrar no Inferno, e aí recuperar algo antes de poder atingir sua apoteose. Freud também tinha que se atrever a penetrar nas profundezas tenebrosas - em seu caso, as da alma - para obter sua revelação." (idem p. 25).
          Freud compartilhava dessas colocações, porém sua auto imagem transcende a de simples herói que corajosamente se lança no desconhecido. Freud se via como um messias, um mentor e guia da nova geração, empreendedora da união de toda humanidade.
          Rizzutto faz uma investigação profunda sobre essa problemática, mostrando a profunda auto-identificação que Freud estabeleceu com Moisés, pois assim como ele, Freud tinha a missão de ser o guardião e o mensageiro de uma nova doutrina divina que traria a verdadeira paz e liberdade aos homens.
          Nas palavras da autora: "Não há dúvida de que Freud acreditava que sua missão era tão importante quanto a de Moisés e de que ele se identificava total e explicitamente com o patriarca." (RIZZUTO p. 175). Rizzuto faz uma citação, no mínimo curiosa, de uma frase extraída de uma carta que Freud escreveu a Jung no dia 17 de janeiro de 1909: "Nós certamente estamos tendo êxito, se sou Moisés, então você é Josué e irá se apossar da terra prometida da psiquiatria, que eu apenas vislumbrei à distância." (RIZZUTO - Freud e Jung, 1974 p 196 - 197).
        Pode se tratar apenas de uma figura de linguagem usada pelo pai da psicanálise, ao referir-se ao crescente sucesso de sua doutrina, porém são muitos os autores que escrevem sobre a vida de Freud, mostrando  o quanto ele se considerava escolhido por Deus para libertar e conduzir a humanidade, já que, como Moisés, à ele haviam sido dadas as cláusulas da Aliança, condição necessária para a união com Deus.
        Diferente do que muitos estudantes afirmam, Freud estava longe de ser um relativista. A contrário, ele se via  como um  "iluminado" pela sabedoria divina, não temia "pelo verdadeiro conteúdo de nossos (seus) ensinamentos". Como confirma em uma carta à Ferenczi em 1913, "Nós temos a verdade” [6]. Também Mahony (1990 p. 104) escreve sobre a busca de Freud pela verdade, pois segundo o autor, o pai da psicanálise concordaria plenamente com a afirmação de Goethe: "o primeiro e último dever do gênio é o seu amor pela verdade."
        Freud passa à Jung a árdua tarefa de conduzir sua doutrina e seu povo, pois assim como Josué, Jung seria fiel, forte e corajoso. Nas palavras do discípulo:
        "Ainda me lembro do entusiasmo com que Freud me disse: "Meu caro Jung, prometa-me jamais abandonar a teoria sexual. De todas, é a coisa mais crucial. Veja, temos de fazer dela dogma, um baluarte inabalável." Ele me falou isso com grande emoção, no tom de um pai dizendo: "Prometa-me uma coisa, meu querido filho: que você irá à igreja todos os domingos." [7]
        Webster descreve a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras como uma seita religiosa, onde Freud era o líder, porém, podemos concluir que a liderança de Freud no grupo transcendia o papel de árbitro e juiz, pois como  Max Graf coloca: "Eu era o apóstolo de Freud, que era meu Cristo!." [8]
        Os discípulos da psicanálise deveriam ser como os apóstolos de Cristo "pescadores de homens", incumbidos da tarefa de evangelizar, ou seja, de disseminar a doutrina ortodoxa de Freud.
        Em 1928, Freud, escreve à seu amigo Oskar Pfister:
        "Não sei se você percebeu o vínculo oculto entre Análise Leiga (1926) e O Futuro de uma Ilusão (1927). No primeiro livro, quero proteger a análise dos médicos e, no segundo, dos padres. Quero confiá-las a uma profissão que ainda não existe, uma profissão de pastores seculares de almas, que não têm por que ser médicos e não devem ser sacerdotes." (BETTELHEIM p. 50).
3. Fundamentos da Teoria Freudiana
       A busca pelo Originário - Inconsciente e Id
"O objeto da luta empreendida por Freud durante toda a sua vida resume-se em ajudar-nos a adquirir uma compreensão de nós próprios, de modo que deixássemos de ser impelidos, por forças que nos eram desconhecidas (...)." 
Bettelheim p. 28
          Em seu trabalho, Freud, teorizou sobre algo que fala secretamente em nós, seu objetivo último era tornar conhecido estes conteúdos genuínos que a natureza humana tenderia a ocultar. Tais conteúdos abalariam o senhorio do homem, já que se teria consciência de que somos meras marionetes. Segundo a psicanálise, é o nosso amor próprio que nos cega para tal conhecimento.
          Por isso, "não é por afetação que Freud enfatiza sem cessar as "resistências" à psicanálise" (ASSON 1996 p. 23). A psicanálise não teria preocupação de ser "popular" ou bem vista,  segundo muitos atores psicanalistas, ela estaria preocupada unicamente com a verdade, "doa a quem doer". Ela seria uma "ciência" compromissada com a verdade, como coloca Asson, ela teria "amor pela verdade" (idem. p. 34).
          Freud é visto como um herói, já que teria se lançado em uma "tarefa árdua e dolorosa" (BETTELHEIM p. 28), sem perspectiva de reconhecimento. Mas à que Freud teria se dedicado de forma tão heróica? Bettelheim nos responde: "Em sua vida e obra, Freud respeitou verdadeiramente a advertência inscrita no templo de Apolo em Delfos: "Conhece-te a ti mesmo" e quis ajudar-nos a fazer o mesmo. Mas conhecer-se a si mesmo, de forma profunda, pode ser experiência extremamente perturbadora" (idem p. 28).
          Agora só nos resta compreender o que significa conhecer a si mesmo, e o que está introspeção profunda traria de tão precioso?
          Partiremos do conceito de psicanálise proposto por Asson: "Psicanálise é o nome para: 1º um procedimento psicológico de investigação de recursos psíquicos quase inacessíveis de outra maneira" (ASSON 1996. p. 24). O acesso a estes recursos seria difícil, quase impossível,  já que são "o que em nós é mais primitivo é mais irracional". (BETTELHEIM p. 72).
          Assim, a tarefa do analista seria semelhante a do arqueólogo. Está comparação foi feita por Freud, grande admirador da arqueologia, fato que explica parcialmente sua coleção de estatuetas egípcias, gregas e romanas, atualmente exposta no Freud Museum, em Londres.
          A aproximação entre a psicanálise e a arqueologia vai muito além de uma mera comparação, pois segundo Bettelheim, Freud trabalhou "dentro do quadro de referência das Geisteswissenschaften, aplicando os métodos apropriados de uma ciência ideográfica" (BETTELHEIM p. 58). Como escreve o mesmo autor: "(...) o trabalho da psicanálise consiste em desenterrar os remanescentes profundamente enterrados do passado, e combiná-los com outros fragmentos que são mais acessíveis; uma vez reunidas todas as peças, torna-se possível especular sobre a origem e a natureza da psique individual." (idem p. 56 - 57).
          Esta comparação nos permite compreender melhor sobre a busca de Freud pelo que é "mais primitivo e irracional" no homem, pois enquanto o interesse da arqueologia é a pré- história da humanidade, o da psicanálise é a pré-história da alma do homem e, do mesmo modo que o arqueólogo percorre as ruínas a procura de um objeto que lhe permita aprofundar seu conhecimento; o psicanalista, de forma semelhante, procura entre o discurso do analisado algum elemento que lhe fale mais sobre este primitivo e secreto inconsciente.
          Este conhecimento tão guardado é a "matéria" por excelência para a psicanálise, segundo Bettelheim, é a energia vital que anima e domina a alma humana. É no profundo do inconsciente que o homem encontraria "a revelação da própria realidade", uma vez que está instância "é o ponto mais denso da realidade, seu excesso de real" (ASSON 1996. p. 27). Seria um erro acreditar em nossa inteligência, só saberíamos realmente quem somos depois de atingir este conhecimento profundo que pulsa em nossa alma.
          A realidade que Asson nos fala, transcende toda a natureza, justamente por isso não pode ser compreendida através da inteligência, o único caminho que nos conduz a tal tesouro é o das "livres associações" e os sonhos, pois nestes o "coração da pessoa tem uma chance muito melhor de se fazer ouvir" (BETTELHEIM p. 112). Ou seja, é neste pensar irracional que o ID deixa emergir seus conteúdos, deixando transparecer essa realidade mágica que liga o homem a toda humanidade.
          A piscoterapia psicanálitica é apresentada como a única saída para conhecer a realidade psíquica, segundo Laplanche: "(...) um inconsciente que é ativamente excluído, recalcado, que é, efetivamente, inacessível à consciência e só pode ser alcançado com a ajuda de um procedimento extremamente complexo e lento, que é o método psicanalitico (...) " (LAPLANCHE 1992 p. 41). 
          Parece importante considerar como estes conceitos, inconsciente e ID, estão presentes no desenvolvimento do pensamento freudiano. Partiremos da primeira tópica, estabelecida em 1895, com o "Estudos sobre a histeria", e atingiu seu ápice em 1915, com os escritos entitulados "Metapsicologia".
          Durante este período a palavra dualidade passa a ser central no pensamento freudiano. Está dualidade não é unívoca, já que pode ser "definida de duas maneiras diferentes: ora é uma oposição com dois termos, ora uma oposição com três termos, com a superposições variáveis. É a famosa dualidade consciente - inconsciente, que, como se sabe, logo necessita da introdução de um terceiro termo, o "pré-consciente", mas para se resolver em seguida, de novo, numa oposição binária" (LAPLANCHE 1992. p. 122).
          Freud descreve um funcionamento ao qual se refere como "o aparelho da alma" ou "aparelho psíquico". Tal descrição estaria baseada no princípio de dualidade entre nossa consciência e algo desconhecido que estaria presente, secretamente, em nossas ações. Assim, essa dualidade se fundamenta na descoberta de "um outro radical em nós" (idem. 1992 p. 122), o inconsciente. O recalcamento originário se torna, portanto, um termo importante dentro da descrição do aparelho psíquico.
          A censura do consciente e do pré-consciente aparecem como rivais das elaborações do inconsciente. Somente nos sonhos e nas associações livres, a censura relaxaria e, consequentemente, os conteúdos do inconsciente poderiam se manifestar de forma mais intensa. Justamente por isso, Freud escreveu:
        "A psicanálise se fundamenta na análise dos sonhos e a interpretação deles constitui a obra mais completa que a jovem ciência realizou até o presente" (Freud 1912 p. 332).
          Freud prossegue dando uma breve explicação de como o inconsciente se manifestaria nos sonhos, nas suas palavras:
        "Durante a noite, a seqüência de pensamentos consegue encontrar vinculações com uma das tendências inconscientes presentes desde a infância na mente do que sonha, mas originalmente reprimida e excluída de sua vida consciente. Com a força tomada do empréstimo a essa ajuda inconsciente, os pensamentos, resíduo do trabalho do dia, tornam-se então ativos novamente e surgem na consciência sob a forma de sonho" (idem, p. 333).
          Este trecho nos dá uma idéia da complexa teoria que tenta descrever como os conteúdos latentes no inconsciente passam a ocupar a consciência durante o sonho. Porém, a mensagem inconsciente presente no sonho não seria algo claro, passível de decodificação, ao contrário, trata-se de uma mensagem enigmática sem conteúdo específico, onde o conteúdo manifesto estaria afastado do latente. A interpretação não poderia se ater, portanto, aos dados concretos, o analista não buscaria o que aparece de real, e sim o sentido da alegoria onírica.  
          Segundo Laplanche, a dualidade entre consciente e inconsciente é a chave para compreendermos a manifestação regressiva desta segunda instância. A oposição começa na própria natureza, já que o inconsciente não obedeceria à mesma lógica a que o consciente e pré-consciente se submetem. Ele teria uma "lógica" própria. O inconsciente teria um funcionamento regressivo, que almejaria retornar para quando o eu e o objeto não haviam se cindido, tempo no qual havia uma total identificação do sujeito com o objeto (relação simbiótica).
          Até aqui tratamos, os princípios propostos pela Primeira Tópica, agora é preciso avançarmos para 1923, quando Freud publica "O Ego e o ID", obra que marca o início da segunda tópica. Sobre esse novo período do pensamento freudiano Laplanche escreveu: ""Nova", entre aspas porque, por um lado, suas raízes são muito antigas e, por outro, porque nunca conseguirá destronar completamente a antiga tópica" (LAPLANCHE 1992 p. 134), e como o mesmo autor concluiu, esta "nova" tópica não parece ter o objetivo de substituir a primeira.
          A "nova" tópica não foi conseqüência da substituição do inconsciente pelo id. Mais uma vez nas palavras de Laplanche: "(a segunda tópica) não se fez pela "base" (conceito inconsciente) mas pelo topo (consciente e pré-consciente)" (idem. p. 134 - entre parênteses explicações acrescentadas pelo autor), foi, portanto, uma modificação do sistema metapsicológico em função de outras instâncias.
          Três descobertas de Freud parecem ter determinado a "nova" tópica. São elas: a descoberta do narcisismo, da importância das identificações na constituição do psiquismo, e, finalmente, a descoberta das instâncias ideais. Estas descobertas levaram Freud a inserir em sua teoria três instâncias: o id, o ego e o superego.
          Antes de prosseguirmos, tratando do objeto da psicanálise, é importante tratarmos, mesmo que rapidamente, destas três instâncias. Partiremos de um trecho de "Ego  e ID":
          "É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada pela influência direta do meio externo, por intermédio do Pcpt - cs (núcleo da percepção externa); em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e se esforça por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, que contém as paixões (...)" (FREUD. 1923. p. 25).
          Podemos concluir que tudo, no princípio, tudo era id, porém, à medida que o psiquismo se transforma, o id acaba por se afastar do real, o eu e o objeto se separam, entre o mundo e o Eu profundo se estabelece uma pequena pele, o ego. No entanto, a superfície se "entrega" para o mundo, esquecendo-se do seu "senhor", tenta impor suas vontades, renegando as "paixões" originais.
          Tanto para Freud, quanto para Groddeck, o "ego comporta-se essencialmente de modo passivo na vida e que, como  ele (Groddeck) o expressa, nós somos "vividos" por forças desconhecidas e incontroláveis." (idem, p. 23). Mas, a frente completa: "(...) o ego tem o hábito de transformar em ação dele a vontade do id, como se fosse sua própria." (FREUD. 1923. p. 26). Ou seja, o ego vive uma ilusão alimentada pelo mundo externo, pois este o faz pensar que é o senhor de suas ações, a realidade material o torna cego para a realidade psíquica, na qual ele é servo do id.
          E o superego o que seria? O superego ou ideal de ego, o herdeiro do Complexo de Édipo, seria uma "graduação" uma parte do ego menos consciente. Como escreveu Freud: "Enquanto o ego é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e o ideal, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno" (FREUD. 1923. p. 38).
        Com a formação do ideal de ego, o indivíduo incorporaria as leis, os tabus, já que estas seriam a promessa de reaver o seu objeto de desejo. A todo momento, o superego estaria cobrando e punindo o ego, ele seria a voz que nunca para de dizer: " - Você deveria ser assim... (como o seu pai) (...) " - Você não pode ser assim (como seu pai)" (FREUD. 1923. p. 38).
          Agora que as três instâncias introduzidas pela segunda tópica foram tratadas, podemos focalizar nossa análise para a questão do id e do inconsciente. Laplanche acrescentou outro argumento para a introdução do id, uma "visão relativamente simplista" da primeira tópica, o inconsciente era entendido como um conteúdo adverso, que, consequentemente, não poderia ser integrado. O inconsciente poderia ser visto como diferente ao recalcado, o que faria "necessário procurar a instância recalcadora no outro sistema, o sistema pré-consciente - consciente"(LAPLANCHE 1992  p. 130).
          Freud, na segunda tópica, enfatizou o fato de tudo, na origem psíquica, ser id. Mas qual seria a diferença entre id e inconsciente? Freud escreveu em "Um esboço de psicanálise": "O id e o inconsciente estão ligados tão estreitamente quanto o ego e o pré-consciente, e o vínculo é ainda mais exclusivo." Laplanche nos explica está estreita ligação: "haveria um inconsciente originário que é o id e, depois, haveria certos conteúdos que, a partir daí, tentariam irromper no ego e que seriam, portanto, secundariamente recalcados" (LAPLANCHE 1992 p. 65).
          Cabe agora perguntarmos: Como a psicanálise define o id? Como ela compreende o objeto que se propõe a estudar? Uma importante ressalva deve ser feita: A psicanálise estuda o "desconhecido", algo que não pode ser apreendido, consequentemente, a única possibilidade é circunscrevê-lo, em outras palavras, não podemos dizer o que ele é, sabe-se apenas o que ele não é.
          Partiremos da definição de Laplanche: "o inconsciente é, precisamente, um modo de funcionamento e - porque não? - nada mais do que um modo de funcionamento regressivo sem conteúdo específico" (LAPLANCHE 1992. p. 47).
          O id seria, portanto, ação pura, "potência indeterminada", nas palavras de Garcia-Roza: "Neste mundo em constante devir, as coisas surgem, se transformam e desaparecem, para dar lugar a outras que terão o mesmo destino. Um mundo em que tudo muda e nada permanece" (GARCIA-ROZA p. 18). Assim, o id seria, potência pura, em constante evolução.
          O id estaria vazio, nele não existiria nenhum conteúdo específico, só existiriam as pulsões, fluxos de energia desejantes, ou seja, o id seria desejo puro, insaciável e irrealizável. Mas desejar implica em necessitar, em ter algo que lhe falte, sobre isto, Garcia-Roza escreveu: na psicanálise "O homem é pensado a partir dessa falta do absoluto, e no entanto, é para esse absoluto que ele se dirige enquanto desejo. Se o desejo é falta, ele aspira à plenitude" (GARCIA-ROZA p. 68). Porém a falta é o absoluto, o final é igual ao começo, assim, o sistema psicanalítico poderia ser representado pelo desenho do Ourobouros (símbolo alquímico de uma serpente que tenta engolir a si própria), onde a dialética impõe a igualdade dos opostos.
          O objeto das pulsões seria o desejo, como explica Garcia-Roza:
        "Não se trata, em psicanálise, de distinguir os pretendentes legítimos dos ilegítimos. Não há objetos legítimos porque não há o objeto absoluto que funcione como modelo. O que pode ser considerado como real não é este ou aquele objeto, mas precisamente o furo, a falta” (GARCIA-ROZA p. 68).
          Segundo Freud, o homem pode se iludir com um prazer parcial, mas a plenitude, a união com o absoluto lhe foi negada, quando a inteligência calou o saber natural intuitivo, o homem, depois disto, viveria uma grande ilusão, deixando-se levar pelas falsas ambições do ego e pelas aparências falseadas que a nossa inteligência captaria do mundo externo.
          O Demiurgo ao criar cada homem único, inteligente e diferente, lançou uma maldição sobre a humanidade:
        "O homem foi lançado numa errância, já que não dispunha mais do sinal inequívoco do objeto anteriormente natural e adequado. Com isto, a satisfação tornou-se impossível, pelo menos enquanto satisfação plena. Nota-se que a impossibilidade de satisfação deficiente ou ambígua, ou ainda a uma carência natural do objeto, mas ao fato de que a ordem natural foi perdida, e, em decorrência, não há mais objeto específico. Daí por diante, apenas uma satisfação parcial passou a ser possível" (GARCIA-ROZA p. 17).
          Este objeto perdido que, embora nunca tenha sido possuído, deve ser reencontrado. Freud o chamou de das Ding - A Coisa, este verdadeiro tesouro que nos permitiria atingir a plenitude e recuperar o absoluto, existiria dentro de cada um de nós.  Em nossos corações estaria o segredo: eu sou a humanidade. Mas o Demiurgo nos cegou, e por isso a psicanálise "garimpa" nossas falas, nossas ações, pois elas emergem desta luz magnífica e inefável que nos une com o universo.
          Não interessa, para a psicanálise, o mundo exterior, pois a realidade objetiva percebida, seria uma ilusão do real que nos afastaria do verdadeiro real inconsciente, onde o id se manifesta através de desejos, fantasias, sonhos, objetos, por excelência, da investigação psicanálitica. Ao contrário do que nos diz o ego, a realidade não é exterior, a verdadeira realidade é a interna, a psíquica. Assim, "a realidade em questão deixa de ser uma realidade externa e passa a ser uma realidade psíquica" (GARCIA-ROZA p. 99).
          Como poderíamos conhecer está realidade? O que o inconsciente nos fala em suas manifestações (sonhos, lapsos de linguagem, lapsos de memória, associações livres e sintomas)? Segundo Laplanche, "pode-se dizer - talvez metaforicamente - que o inconsciente fala, mas não quer comunicar nada, não veicula nenhuma mensagem. No sonho, no sintoma, e, mesmo em sintomas diretamente associados à linguagem como o lapso, por exemplo, cumpre insistir nisto: trata-se de formações inconscientes, fechadas em si mesmas, e não destinadas à comunicação"(LAPLANCHE 1992 p. 98).
          A tarefa do analista seria a de desmetaforizar os conteúdos inconscientes. Seu objetivo seria o de garimpar o sentido da "mensagem, ainda que vaga e, sobretudo, enigmática, mas endereçada ao outro" (LAPLANCHE 1992. p. 98). Desmetaforizar estaria muito distante da decodificação que acontece na comunicação, pois é o sentido e não o conteúdo que caracteriza a fala inconsciente. Assim, desmetaforizar seria, distinguir o conteúdo latente do manifesto, ou seja, discriminar os conteúdos objetivos do sentido profundo, que estes teriam.
          Outra importante característica da fala inconsciente é, que esta se utiliza de recursos "lógicos" diferentes dos mobilizados pelo ego.  Lacan chama esta "lógica" de função classificatória primária, que, como aponta Garcia-Roza, se baseia no conceito de pensamento selvagem, desenvolvido por Lévi-Strauss. Dizer que o pensamento inconsciente é um pensar selvagem, significa que assim como este, o pensar inconsciente é não-crítico e sem fins específicos. Estamos mais uma vez diante da lógica inconsciente, antagônica à da razão.
          O id, seria transcendente, o absoluto e o infinito imanente a cada homem. Garcia-Roza compara o id ao daimon que habita o homem na alegoria platônica do Demiurgo. Coerente ao Timeude Platão, o homem teria um elemento heterogêneo em relação à natureza primeira (a Divindade), assim, para restabelecer esta natureza perdida seria preciso unir o que foi separado pelo Demiurgo (Deus Criador). Esta cisão teria feito com que a humanidade perdesse o objeto absoluto e, por isso, o homem foi colocado no mundo como errante, sem possibilidade de satisfação plena.
          Esta busca pela plenitude nos permite compreender o "pan-sexualismo" freudiano. "Pois todo esse movimento do id, determinação e retorno à totalidade, é evidentemente marcado pela teoria freudiana da sexualidade. Não se trata de não importa que dialética, de não importa que retorno: é um retorno centrado no problema sexual, e o próprio simbolismo do id é inteiramente um simbolismo sexual" (LAPLANCHE 1992 p. 146).
          Para a teoria psicanálitica, a sexualidade seria o caminho para a indistinção, ou seja, para a união primária onde o eu e o objeto estariam fundidos. Este homem originário, bissexual, em muito se assemelha ao homem andrógino de Platão, que Freud cita em "Além do Princípio de Prazer". Assim, o fato de sermos sexuados nos tornaria incompletos, divididos e limitados, já que  por "sexão" (tendo a sexão, um duplo sentido, ao mesmo tempo a ação de "seccionar" e de "sexuar") perdemos nossa "individualidade" (unidade).
          Segundo a psicanálise esta seria nossa saga: recuperar a bixessualidade do embrião. Freud, em "O Mal-Estar na Civilização", escreveu quais seriam os objetos sexuais inatingíveis que redimiriam nossa incompletude. Ao homem caberia recuperar a mulher, e a mulher unir-se novamente a aquela "parte de si própria que lhe fora separada - seu filho" (FREUD 1930 p. 55).
          Sobre a busca da mulher pela bixessualidade Laplanche completa: "(...) a mãe no momento do parto é plenamente bissexual com o bebê-falo que a preenche. Ela está por isso mesmo, o mais perto possível de seu estado fetal, proximidade essa que não está isenta de engendrar, em seguida, ressentimento, pois, o pensamento de Groddeck está longe de ser um otimismo "beatífico": a hostilidade e o ódio aí encontram seu lugar, particularmente a hostilidade da mãe pela criança, a qual se explica pela perda dessa plenitude, uma vez consumado o parto".(LAPLANCHE 1992 p. 142).
          Assim, mais uma vez, o estado original onde todos éramos um foi negado e mais um corpo cindido surgiu. Contudo, o elo que nos liga ao absoluto está dentro de nós. O que alguns chamam de éon, outros de germe divino, a psicanálise chama de id, e mesmo sendo impossível de conhece-lo, está "nova" ciência nos sugere uma introspeção profunda.
         Espero que tenha ficado claro que é impossível conciliar ser católico com ser psicanalista, já que a intenção de Freud era justamente destruir a Igreja. Não é por acaso que autores como Ellenberger e Webster afirmam, por exemplo, que Freud tentou substituir o sacramento da confissão pela sessão psicanalítica.
         No que se refere a segunda parte da sua pergunta, tenho certeza de que nenhum fundamento e nenhuma metodologia psicanalítica precisa ser utilizada. A Santa Igreja possui os sacramentos e os ensinamentos de seus santos para ajudar seus fiéis na  prática da virtude.
Salve Maria!
Maria Rita Rondani

Referências Bibliográficas:


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18. RIZZUTO, Ana - Maria. Por que Freud rejeitou Deus?. tradução: Luciana Pudenzi - São Paulo: Loyola, 2001.
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[2] Henri Challes Puech - Enquête de la Gnose - Paris, Gallimard, 1978. Vol I, p. 236 - apud Fedeli.
[3] Freud - Uma Neurose demoníaca do século XVII. 1923. apud Rizzuto p. 164.
[4] ."Heinrich Meng e Ernst Freud (ed.), Psychoanalysis and Faith: The Letters of Sigmund Freud and Oskar Pfister, Nova York: Basic Books, 1963, p 61-2. apud. Webster p. 297.
[5] Max Graf, "Reminiscências do Professor Sigmund Freud", Psychoanalytic Quartely, XI, 1942, pp. 470- 71 .apud Webster. p. 280.
[6] Freud, citado em Jones, II, p. 168, US, p. 148; edição da Penguin, p. 413. apud Webster p. 276.
[7] Jung. Memories, Dreams, Reflections, Routledge e Kegan Paul, 1963 apud Webster p. 284.
[8] Max Graf. Stekel. Autobiography. p. 106 apud Webster p. 280.

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