sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A Imortalidade da Alma Humana segundo Santo Tomás de Aquino

Carlos Nougué

[Nota do editor: texto publicado anteriormente nos blogs SPES e Estudos Tomistas, recuperado via Wayback Machine.]
Nota prévia

Este texto já foi publicado em outros lugares, como o blog Contra Impugnantes. A versão que ora se publica aqui, porém, está inteiramente revisada, precisada e enxugada, devendo-se portanto considerar a antiga como superada.
Ademais, é fundado na versão atual que farei minha exposição no evento “Santo Tomás, médico da alma” (cf. Evento “Santo Tomás, médico da alma”, em 24/09 — inscrições abertas).
Lembre-se, por fim, que proximamente a editora É Realizações publicará as Questões Disputadas sobre a Alma de Santo Tomás de Aquino, com magnífico estudo introdutório de Carlos Augusto Casanova (cujo livro El hombre – Frontera entre lo inteligible y lo sensible recomendo enfaticamente) e tradução de Luiz Astorga.


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A Imortalidade da Alma Humana
Segundo Santo Tomás de Aquino


Entre as doutrinas filosóficas que têm o homem por dado real, ou seja, no campo do realismo, duas concepções se encontram em lados diametralmente opostos quanto ao modo de considerar a nossa natureza. E, se se admite que o homem é um dado real no sentido estrito do termo, se se admite que ele possui verdadeira consistência substancial — cada um de nós é o mesmo indivíduo desde o nascimento até o último suspiro —, então como o conceber precisamente? De Demócrito[1] a Marx, o materialismo explica-o já por um condicionamento físico-mecânico, já por um condicionamento econômico. Por sua parte, o ultraespiritualismo considera o homem como uma espécie de anjo encerrado num corpo, trate-se quer do platonismo, quer do cartesianismo.[2]
Continuemos a tratar o ultraespiritualismo. Ora, ele indubitavelmente não dá conta das inegáveis correlações que há no homem entre a vida psíquica e a vida orgânica (sono, traumatismos, lesões cerebrais, etc.). Nem Platão, nem Descartes, nem os discípulos de ambos — todos sempre dualistas — são capazes sequer de conceber tais fenômenos como as correlações que de fato são. Mas, se o ultraespiritualismo não é uma resposta veraz à falsidade materialista com respeito à natureza humana, onde se encontrará a verdadeira resposta? Na solução tomista, como veremos. Como em todas as questões, o tomismo assoma aqui como solução entre posições antinômicas — como “cume entre dois vales”.
Há porém que dizer, de início, que a solução tomista começa (só começa) pela assimilação da solução que Aristóteles dá ao problema da natureza humana: a alma é a forma substancial do corpo. Trata-se da aplicação à natureza humana da teoria aristotélica do hilemorfismo. Detenhamo-nos nela.
O hilemorfismo (de hylé = matéria + morphé = forma) pode ser provado por diversos argumentos. Façamo-lo ocupando-nos do caso da nutrição seguida da assimilação. Que se dá aqui? Que se dá quando qualquer animal come? A ciência empírica ou quantitativa pode descrever, nisto, uma diversidade de processos físico-químicos, mas a filosofia da natureza interessa-se aqui por outra coisa, a saber: a constatação de que qualquer animal, uma vez nutrido, elimina determinados elementos dos corpos que ele comeu, mas ao mesmo tempo guarda deles alguma coisa que ele mudou, que ele transformou em si mesmo, incorporando-o a si próprio. Assim, se se ingeriu carne, ela já não se encontrará tal qual era na carne nem no sangue de quem a ingeriu. Dela, algo desapareceu e algo permanece no corpo do animal que a ingeriu. Como expressá-lo? Assim: na alimentação, elementos estranhos ao corpo de determinado animal tornam-se parte dele, existindo agora de modo completamente novo; incorporam-se ao todo que é este animal, determinados pelaforma (morphé ou eidos) própria dele.[3] Algo, todavia, subsiste, e é o substrato material, a potência ou potencialidade que recebeu a forma nova, a forma do animal que se alimentou, em lugar do que determinava a forma anterior. Mas acautelemo-nos, desde já, de uma absurdidade frequentemente cometida a respeito da teoria hilemórfica, afirmando: a matéria não é, de modo nenhum, algo constituído independentemente de alguma forma. Tudo quanto há na criação — ainda que se trate de uma partícula atômica ou de um cômoro — é já uma síntese matéria-forma. É já uma dualidade ontológica. É impossível a existência de matéria sem forma. Por conseguinte, a matéria prima não é algo que se possa figurar visível nem imageticamente. Se sem ela nos seria impossível compreender a mescla de estabilidade e mudança que é uma modificação substancial como a que se dá na alimentação, e se é indubitavelmente real,[4] ela no entanto não tem por si mesma nenhuma propriedade no estado atual.[5] Segundo a fórmula tomista, a matéria prima não é, por si mesma,“nec quid” (ou seja, não tem essência independente da que dá a forma ao composto hilemórfico), nem “nec quale” (ou seja, não tem nenhuma qualidade isolada, dado que esta não se pode conceber senão com relação à forma que lhe é o princípio e a explicação), nem “nec quantum” (não tem extensão atual, pois que qualquer corpo, qualquer extensão é já um composto hilemórfico, não sendo a matéria prima senão a fonte passiva para o corpo total, a capacidade de este ser extenso). Em termos aristotélicos, a matéria prima é pura potência.
A noção de potência requer, sem dúvida, vigoroso e profundo esforço de abstração; mas sem ela é impossível conceber ou explicar a natureza íntima da matéria e, mais especialmente, a mudança que esta sofre. Ora, se a matéria prima não fosse pura potência, se de algum modo ela fosse já alguma forma, toda e qualquer mudança já não seria senão acidental ou secundária, e não haveria diferença senão de grau, por exemplo, entre o mudar permanecendo o mesmo e o fato de nascer e morrer — ou seja, estar-se-ia diante de um contrassenso.[6]
Pois bem, para trilharmos com segurança o caminho que, retornando ainda à questão do hilemorfismo, nos levará por fim à concepção tomista da alma humana, detenhamo-nos algo longamente nas noções de ato e potência.
Este par de noções é, indubitavelmente, o centro não só de todo o aristotelismo mas de todo o tomismo, e responde a uma indagação igualmente central: Numa metafísica do ser, na qual o princípio de identidade absolutamente não se resume a uma lei do pensamento, sendo também, e sobretudo, uma expressão do real, como considerar a mudança e o devir? É justamente esta a questão que sempre dividiu, e ainda divide, os filósofos, lançando-os em antinomias e aporias[7]perpétuas, e que porém se resolve de todo pela doutrina perene. Vejamo-lo.
Dois dados impõem-se imediatamente, aqui: a existência da mudança, que é uma evidência sensível, e, por outro lado, a exigência de identidade, que se manifesta pela inteligência, e que traduz a irredutibilidade entre o ser e o não ser. Sucede, todavia, que aqueles dois dados não se conciliam facilmente, o que leva muitos filósofos a sacrificar ou a mudança (e a pluralidade que dela decorre), ou a identidade.[8] Ora, não se pode negar o fato da mudança, a não ser que se professe uma teoria céptica do conhecimento e, por ela, se considere ilusão tudo quanto nos fornecem os sentidos. Mas permaneçamos no terreno do bom senso, e tomemos por exemplo um objeto que muda — um vegetal que rebenta: um eucalipto, um cipreste, um carvalho. Esta nova maneira de ser é absolutamente real, e não há como negá-la. E ela é de todo nova; não existia tal qual existe agora; não estava assim constituída antes de se manifestar exatamente assim. O carvalho não está pré-formado na glande, assim como o embrião animal não está pré-constituído nas células parentais. Como tal se pode dar? Por uma criação ex nihilo, ou seja, a partir do nada? De modo algum, e antes de tudo porque a ideia de criação não se pode conceber senão com respeito a uma causa infinita e perfeita, e não com respeito a agentes criados e limitados, sejam estes visíveis ou invisíveis; mas também porque, se tal propriedade nova, ao aparecer, fosse uma criação em sentido estrito ou literal, ela se aplicaria ao ente que lhe é o sujeito — ou seja, aplicar-se-ia a ele do exterior — e portanto não estaria em continuidade dinâmica com os estados que a antecederam. O que se dá é que tal propriedade nova já se encontra, sim, com anterioridade no sujeito, mas num modo de ser todo particular: justamente, em potência.
potência não se pode ver, nem tocar, nem medir, porque não se pode ver, nem tocar, nem medir o que de alguma maneira já se realizou, o que, pois, está já em ato. À potência apenas a inferimos ou concluímos, tornando assim inteligível ou pensável a mudança. Não há como “imaginar visualmente o ente em potência como uma espécie de feto no seio da mãe”;[9] há quepensá-lo com relação à noção de ato, porque este, sim, é que corresponde ao dado factual. A potência não é como um ato truncado ou apenas esboçado.
Muitos filósofos modernos consideram que esta propriedade não passa, antes da sua manifestação, de pura possibilidade lógica, uma pura abstração, sem conteúdo ontológico. Pois precisamente aí, nessa negação, é que reside a ruína do seu pensamento: entre o puro possível de ordem nocional (ou seja, o que poderia existir se tal ou qual condição se desse) e o atual (ou seja, o que está efetivamente dado) há a potência real (ou seja, o que é mais que o possível e menos que o atual), e sem esta noção todo e qualquer sistema filosófico não redundará senão em aporias.
Retomemos o raciocínio de maneira agora esquemática: todo e qualquer ente pode ser ou aindapossível, ou já real, e, sendo já real, pode estar ou em potência ou em ato. Não há de ser de outro modo, porque admitir que uma propriedade nova (o eucalipto, o cipreste, o carvalho) é real e dizer, em seguida, que antes de ela manifestar-se havia somente uma possibilidade lógica seria dizer, de maneira contraditória, que um efeito real pode advir de uma causa ou fonte não real. Ora, o puro possível não é nada constituído, e, se o resultado ou ponto de chegada é real ou atual, só o é pelo fato de a fonte ou ponto de partida ser, obrigatoriamente, real (ainda que real potencial), e não mera possibilidade conceptual.[10]                            
A noção de potência é correlativa à noção de ato: trata-se sempre de potência de tal ou qual ato, donde haver numerosos tipos de potência, sem nada em comum entre si senão o fato simples de ser potência e não ato (sem se tratar com isto, insista-se, de puro possível). Assim, a compreensão do par matéria/forma, do qual tratamos mais acima, só se pode dar pela aplicação destas noções de potência e ato.[11] Ademais, há que distinguir a potência passiva (capacidade receptiva, ou potência de padecer) da potência ativa (ordenada à atuação, a tornar atual). Assim, outra vez esquematicamente, mas agora em plano superior: todo e qualquer ente pode ser ou ainda possível, ou já real, e, sendo já real, pode estar em potência ou passiva ou ativa, ou pode estar em ato.
Pois bem, a ideia mestra desta metafísica é a superioridade do ato, como tal, sobre a potência, e a sua anterioridade, em termos absolutos, com relação a ela. Por que superioridade? Porque tudo o que está efetivamente realizado, ou seja, tudo o que é, está em ato. Dizer ato é dizer perfeição.[12]Um ente que muda é, assim, imperfeito: está prestes a adquirir ou perder algo, o que lhe denota a finitude ou contingência. O que lhe denota a pobreza ontológica. A mudança, isto é, a passagem da potência ao ato, “não tem sentido senão em relação ao ato a que tende. É maximamente absurdo crer que há mais no devir que no ser, mais na caça do que na presa”.[13] Evidentemente, uma realidade existe em potência antes de estar em ato,[14] mas, globalmente, o ato é anterior à potência: toda e qualquer mudança, quer dizer, toda e qualquer passagem da potência ao ato, supõe a ação de algo já em ato (motor); além disso, e sobretudo, acima de todos os motores movidos há o Primeiro Motor Imóvel, não fazendo aqueles senão transmitir-lhe a atividade primária. Em suma: Primeiro Motor Imóvel = Ato Puro (sem mistura de potência alguma) = Deus.[15]
Mas é precisamente da distinção entre ato e potência que nos advém uma questão filosófica de solução complexa, sobre a qual, se queremos compreender sem lacunas a visão tomista da alma humana, tenho de me debruçar algo exaustivamente. Formulo-a: Se a potência é limitada por si mesma, o ato não pode ser limitado senão por uma potência na qual ele seja recebido, ou então pelo seu papel potencial com respeito a um ato superior.
Determinada potência é sempre a capacidade real de determinada perfeição. Esta noção, todavia, implica em si mesma limitação — é que ela remete a um aspecto da realidade constituído precisamente por tal capacidade e não por nenhuma outra, ou seja, por uma capacidade de certo grau e não por uma capacidade de grau superior. Ora, se quanto à potência não há por que perguntar o que a limita, por ser patente a resposta, o mesmo não se dá com respeito ao ato. Que não se lhe busque a razão da limitação na atividade da causa que o põe na existência, fazendo-o justamente finito e limitado — será vão. Esta tentativa, feita por Suárez,[16] ao mesmo tempo que recorre a uma explicação exterior à realidade considerada, sem explicá-la de dentro da sua finitude essencial, esquece que a causa exterior, Deus, não pode produzir o ato como limitado senão enquanto ele é recebido precisamente numa potência que o limite. Desse modo, a forma é limitada pela matéria prima que a recebe, assim como a existência é limitada pela essência receptora.[17] Por natureza e por definição ato quer dizer perfeição, e tende a comunicar-se e expandir-se sem nenhuma limitação intrínseca. Ele não traz em si a ideia de limitação. O real não pode, sem ferir o princípio de contradição,[18] ser o que tende a conferir a perfeição e o que, a um só tempo e sob idêntico aspecto, limita ou impede esta mesma perfeição.[19] Este é o fundamento da metafísica tomista.[20]
Como se disse mais acima, o ato é limitado pela potência, ou por seu papel de potência com relação a um ato superior.[21] Acrescente-se, agora, que se a potência é limitada por si mesma, enquanto tal ou qual capacidade, ela no entanto guarda certa indeterminação que requer o ato que a completa. Assim, a matéria prima, que é pura potência, é por si mesma despida de forma, e a aquisição de dada forma, que a faz fixar-se em dada espécie, determina-lhe o contorno ontológico e inteligível — tem-se, agora, um composto hilemórfico.
Aliás, não se deve conceber tal limitação do ato — da perfeição — pela potência como se se tratasse de esta atuar sobre aquele para detê-lo ou fazê-lo retrair. Sim, porque o ato não é limitado pela potência senão enquanto é tal ato, ordenado a tal potência e não a nenhuma outra. Ato e potência não são coisas já formadas, mas elementos do real que só se dão correlativamente — que sósão um pelo outro.
Pois bem, por tudo quanto já vimos, não pode haver em cada ente senão uma só e única forma substancial. Há que rejeitar toda e qualquer solução pluriformista. Cada forma superior assume o papel que teria desempenhado a forma precedente no composto inferior. Por exemplo: num ser vivo, vegetal ou animal, é a forma deste que assume até o papel de determinante físico-químico com relação à matéria prima. Não existe isso de um agregado de compostos químicos assumidos por uma forma superior que se justaporia a eles, como a embuti-los de alguma maneira em si mesma. Se assim fosse, cada ente só teria uma unidade acidental, não sendo a sua forma senão uma mera forma mais, e não uma fonte substancial de determinação e de finalidade.
No terreno cosmológico, ademais, é indubitável que o hilemorfismo constitui explicação de todo satisfatória — a pluralidade dos “tipos” explica-se tanto pela pluralidade das formas como pela sua hierarquia. A pluralidade dos indivíduos no interior de dado “tipo” explica-se por ser a forma específica multiplicável em porções de matéria diferente.[22] Com isso se podem compreender tanto as semelhanças como as dessemelhanças existentes entre os corpos, sem redução da pluralidade a uma unidade que mutilaria o real. Para o hilemorfismo, o que há é unidade na diversidade: os entes da mesma espécie são diferentes, mas têm o mesmo eidos ou idea (= forma). Cada ente é substancialmente um, mas é metafisicamente composto de um princípio potencial e de um princípio atual.
Quanto às próprias formas, a explicação deve em última análise buscar-se na mesma Causa Primeira, o que, por implicar as provas desta Causa única, não posso obviamente tratar aqui. Mas antes de tornar à questão mesma da alma humana há ainda por ver, no ápice da escala dos entes materiais, o mundo dos viventes.[23]
Os argumentos mecanicistas, que são incapazes já de dar conta do mundo inorgânico, falham de todo ao deparar com o mundo dos viventes. Eles consistem em afirmar que não há nos viventes forças irredutíveis aos fatores físico-químicos. Tudo no organismo de tais entes se dá em razão de reações mais ou complexas destes fatores. Além disso, como função alguma é absolutamente própria ao domínio da vida, os limites entre o inorgânico e o orgânico, se existem, são de todo imprecisos e indiscerníveis – ainda segundo o mecanicismo.
Mas não estará claro que os organismos não são meros agregados de elementos justapostos nem máquinas altamente complexas? Quanto a serem agregados, nem é preciso redargui-lo aqui. Quanto a serem máquinas, diga-se simplesmente que, ao contrário das máquinas, que deixam de funcionar pela falta de uma pequena peça, os organismos dispõem de capacidade de adaptação, quando não de regeneração. Claro está, tudo quanto se passa num ente vivo é materialmente físico-químico; a digestão, por exemplo, rege-se por reações químicas ligadas à estrutura molecular e ao processo de seu equilíbrio. Esta constatação, todavia, não nos deve perturbar de modo algum, pois que se trata aqui de algo além, do modo mesmo como as leis da matéria se aplicam aos organismos. Retome-se a assimilação. Um ente vivo transforma em si mesmo elementos que lhe são exteriores — transforma, e não meramente os justapõe. É portanto “ridículo dizer, com certos mecanicistas retardatários, que o equivalente da nutrição se encontra nos cristais: nestes encontra-se uma adição de elementos que obedece a leis de estrutura harmoniosa, que põem em cena o mecanismo a partir do nível da matéria inanimada [...], mas esta adição permanece de tipo muito diferente de um fenômeno verdadeiramente vital”.[24] Ademais, o desenvolvimento de cada organismo dá-se de maneira completamente diversa do que querem fazer crer os postulados mecanicistas. Veja-se o caso da embriogênese:[25] nada mais finalista[26] do que ela, quer a consideremos em conjunto, como a passagem de duas células iniciais a um organismo muitíssimo complexo, quer a consideremos em pormenor, como o órgão da visão, que se desenvolve anteriormente a qualquer necessidade atual de funcionamento.[27] Mais que isto, o organismo defende-se desde o desenvolvimento inicial até a morte; tenha-se disto o exemplo da luta contra as infecções, o da regeneração de certos membros ou órgãos, e o da própria reprodução, que não é senão outro nome da luta contra a aniquilação das espécies.[28]
Se porém já vimos a irredutibilidade do orgânico ao inorgânico, resta ainda por ver a diferença, no reino do vivente, entre o vegetal e o animal. O primeiro, conquanto se inclua incontestavelmente no reino da vida, dado que nasce, luta, assimila, medra e se reproduz, com o que manifesta aspectos essenciais daquela finalidade que caracteriza o ente vivo, não possui todavia “consciência” sensível sequer. Ele não é dotado de sistema nervoso central, nem de nervos, nem de órgãos propriamente ditos, os quais são a condição de qualquer “consciência” sensível, ainda que mínima. (Ser difícil classificar tal ou qual ente vivo como vegetal ou animal não nos pode conduzir a negar, de modo algum, a distinção de princípio entre ambos.) Só no animal se encontra a sensação, a memória sensível, a estimativa,[29] o prazer, a dor e tantas outras coisas mais, conquanto não a vontade nem a razão, próprias unicamente do homem.
E, antes pois de passarmos enfim à alma humana, tenho de insistir um pouco mais em como Santo Tomás resolve a questão do psiquismo animal. Para ele não se pode negar aos animais certa atividade sensível, certa ação sensorial, absolutamente comprovável tanto pela sua constituição como pelo seu comportamento;[30] mas igualmente não se deve explicar por uma suposta razão o que se explica tão somente pelo instinto, pela memória sensível, pelas sensações. Falta aos animais o que caracteriza precipuamente a atividade intelectual, a saber: a linguagem articulada, as noções abstratas, os progressos técnicos, as preocupações estéticas, éticas e religiosas.[31]
Em suma, o animal possui efetivamente uma alma, uma forma dotada de consciência sensível, ou melhor, uma forma que é fonte de tal consciência;[32] mas esta alma não sobrevive à destruição do corpo. Ela é sempre coextensiva, de alguma maneira, às condições materiais ou orgânicas de base, e desaparece com elas.[33]
Com o homem tudo se passa diferentemente, muito diferentemente. E, se por um lado o conhecimento de que somos capazes refuta o materialismo, é impossível por outro lado que o nosso princípio pensante apenas se acrescente ao corpo, considerado este como substância distinta. Estamos, pois, quanto à alma humana, em terreno inteiramente tomístico, ou seja, na solução que também a este problema dá Santo Tomás, sob a luz da Revelação, valendo-se de Aristóteles, e erigindo-se outra vez, com mais esta síntese cabal, como cume entre dois vales. Vejamo-lo detidamente, começando por retomar de outro ângulo, e à guisa de suma, o que aqui já se disse ou deixou implícito.
O homem não é, como os Anjos, puramente espiritual;[34] é dotado de corpo, ou melhor, de corpo material, extenso, constituído de partes diferenciadas. O conjunto destas partes, todavia, não constitui mero agregado acidental; tem, ao contrário, unidade substancial. Cada um de nós constata, desde tenra infância, que sou eu que me locomovo, sou eu que me alimento, e sou eu que sofro esta ou aquela dor, não a minha cabeça, nem a minha perna contundida no pique. Tudo quanto tenho por dentro, vísceras, veias, sangue, assim como tudo quanto tenho por fora, pele, pelos, unhas, pertence inteiramente a mim; não tem nenhuma autonomia vital. Os atos que executa tanto a minha mão direita como a esquerda não são executados senão por mim mesmo; toda e qualquer ação ou movimento que me parta dos membros são não só de minha inteira propriedade, mas sempre de minha inteira responsabilidade (excluídos, naturalmente, os que se dão no sono, etc.). Ora, se sou eu que existo, e de todo, em mim mesmo, e se é para a minha vida que estão dispostos todos os meus órgãos ou partes do corpo, então sou o que sou no sentido metafísico preciso desubstância.
Prossigamos neste último ponto. Há em todas as substâncias materiais, donde também no homem, um princípio que lhes determina a matéria segundo o modo de existência próprio a cada uma — têm pois uma forma substancial. E é justamente esta forma o que rege não somente a disposição das diversas partes no todo, mas a própria existência deste todo e toda a sua atividade. Pois é à forma substancial do homem e de todos os outros entes vivos, vegetais como animais, que chamamos alma. A alma pode portanto definir-se, metafisicamente, como a forma substancial de um corpo vivo.
O óbvio, por conseguinte: a alma e o corpo não são dois entes distintos, mas dois distintos princípios do mesmo ente. Sem uma alma não há um corpo; há, sim, por exemplo, a matéria prima (incognoscível, como já vimos) que comporá um corpo humano, mas tão só isso, não ainda estepróprio corpo. Um cadáver não é um corpo humano; aqui, sim, é que temos um agregado acidental de células, despojado de toda e qualquer unidade essencial ou substancial. E tanto é assim, que cada uma das suas partes seguirá doravante evolução própria, sem nenhuma dependência para com as demais, sem nenhuma subordinação a nenhuma lei reguladora do conjunto. Se há unidade do corpo, é porque há uma alma; mais: se há corpo, é porque ele está conformado por uma alma, ou melhor, por sua alma.
Relembremos ademais que, como a de todos os viventes, a alma é a única forma substancial do homem — é impossível, como vimos, haver mais de uma forma substancial num mesmo ente. E é a alma humana que, unida ao corpo humano, lhe regula e governa toda a atividade, quer no propriamente humano, quer no que tem em comum com os vegetais e os animais. As formas mesmas dos elementos químicos constitutivos do corpo, como também já vimos, não são formas autônomas. Subsistem apenas virtualmente, integradas na disposição do conjunto, porque é a este que os elementos se subordinam como a uma síntese.
Quanto mais perfeita for a substância material, tanto mais complexa lhe será a forma. Trata-se, repito, de uma síntese, ou seja, são seus elementos constituintes as leis das substâncias de ordem inferior que nela se encontram reunidas; mas, se tem todas as perfeições existentes nestas, tem também as perfeições que lhe pertencem exclusivamente, como todo que é. É porque todas estas perfeições, as inferiores como as superiores, formam um só e único feixe — em ordem a um só e único fim, o fim de um único e só ente — que se dá uma unidade substancial, e é porque se dá esta unidade substancial que há, necessariamente, requerida por esta última como o seu princípio de existência, uma forma substancial.
Por outro lado, haver no homem, como em todos os entes vivos, uma única e mesma forma substancial não impede — muito pelo contrário — que haja nele, como igualmente em todos os entes vivos, diversas formas acidentais. É que, se a alma única dispõe a matéria do corpo e suas partes consoante o que lhe exige a essência mesma de homem, o que porém é indiferente a esta essência (gênio, altura, peso, cor, etc.) será acidente, ou seja, acidente determinado por formas distintas da alma, secundárias pois, e no entanto inerentes ou a ela ou ao conjunto de alma e corpo. 
Pois bem, esta é a teoria aristotélica da alma como forma substancial do corpo, justamente a teoria que, como já deixei dito, Santo Tomás de Aquino não só retomará como desenvolverá e completará. Dirá o Doutor Comum, de modo conciso e preciso: a alma é aquilo “por que o homem é um ente em ato, e é corpo, ser vivo, animal e homem”.[35]
Assim, por quanto já se disse aqui, há que forçosamente inferir a impossibilidade de localizar a alma; tentar fazê-lo seria considerar a alma ou como parte material do corpo, ou como ente distinto do corpo e que atue sobre ele, como queria Descartes, por meio de dado órgão. Ora, como a alma é uma forma, ela é necessariamente imaterial; se está sujeita à extensão, estando por essa razão, obrigatoriamente, onde o corpo estiver, só o está precisamente porque é forma deste corpo. Mas dentro do corpo absolutamente não tem lugar determinado, nem está distribuída por todo ele; estátoda, isto sim, em todo o corpo ou em cada uma de suas partes. Está em todo o corpo, naturalmente, porque todo ele se rege por ela, quer na sua disposição, quer na sua atividade; e não está distribuída pelo corpo todo, mas está toda, isto sim, em todo o corpo ou em cada parte dele, porque como toda e qualquer forma, ou seja, como princípio de unidade, é indivisível. É a ordem do conjunto do corpo, e como tal exige que cada parte deste conjunto seja exatamente o que é, sem tirar nem pôr. Acrescente-se a quanto acabei de dizer, todavia, a seguinte precisão: a alma está toda em todas as partes do corpo segundo a totalidade da sua perfeição, mas não segundo toda a sua virtualidade, dado que destina cada porção de matéria a formar um só e determinado órgão.[36]
Como, porém, ante a negativa de buscar uma localização para a alma, salvaguardar a distinção obrigada entre matéria e forma? Assim: em vez de supormos a alma como um fluido vertido no corpo ou concentrado num dos seus órgãos — e, de algum modo, contido nele —, digamos antes, com Santo Tomás, que é a alma que contém o corpo, uma vez que é ela que lhe dá sua unidade.[37]
Mas, não obstante ser toda a atividade do corpo dependente da alma, e não se poder atribuir nenhuma das nossas ações (voluntárias ou involuntárias) ao corpo sem a participação regente da alma, não é contudo a alma o motor do corpo no sentido de que lhe fosse a causa eficiente dos movimentos e atos; ela não é fonte de energia física que o fizesse mover. Não, a alma não é causa eficiente, mas causa formal: todos os movimentos do corpo provêm ou da energia que ele recebe do meio circundante, ou das energias diversas que ele armazena nos seus órgãos, sendo a alma simplesmente a lei consoante a qual estas energias se canalizam, distribuem e aproveitam no corpo. Di-lo Santo Tomás de Aquino: “a alma não move o corpo por seu [próprio] ser [...], mas pela potência motora, cujo ato pressupõe o corpo já posto em ato pela alma”.[38] Mas que causa será o corpo no composto que ele, digamos, “partilha” com a alma?
O corpo, ou seja, a matéria do corpo é a causa material da atividade humana no domínio da sensibilidade como no da vida vegetativa; constituinte intrínseco do composto que é o ser humano, é indispensável ao exercício pela alma das atividades que requeiram contato com os demais corpos — e nisso reside, para Santo Tomás, o motivo por que o homem tem uma alma e um corpo.
Não é possível, por conseguinte, encontrar no homem atividades que fossem regidas pelo corpo. Mas, se alma é o princípio que faz concorrer todas as operações para um só fim, regendo toda e qualquer atividade humana, o corpo é o meio que permite à alma buscar, no mundo material, os elementos indispensáveis à vida do homem. É o corpo um elemento intrínseco da ação da alma.
Mas da atividade humana faz parte o pensamento, e é o pensamento algo totalmente imaterial. Esclareça-se: é-o no processo de conhecimento, que é o seu ato sumo. Vejamo-lo de perto.
Ao conhecer determinado objeto, o homem como que se identifica com ele; toma como lei do pensamento a lei da existência deste objeto, a qual lei lhe produz no espírito as mesmas consequências a que, como propriedades concretas, dá ensejo na realidade. Mas a forma mesma deste objeto agora conhecido, a qual passa a reger a inteligência, passa a existir nesta, ademais, de modo totalmente diverso do modo como existia no objeto — passa a existir aqui abstratamente, ou seja, imaterialmente. Quando determinada forma se realiza na matéria prima, esta a concretiza, ou seja, a materializa, enquanto aquela forma determina a potência da matéria prima a certo modo de ser, excluindo-lhe a sujeição a quaisquer outras formas; na inteligência, todavia, a forma do objeto não existe senão na sua universalidade, sem característica alguma da individuação que lhe confere a matéria (e que lhe confere necessariamente, dada ser esta, com efeito, a sua função precípua). Compreender as propriedades de um retângulo não é conhecer nenhum retângulo determinado, maso retângulo, ou seja, o retângulo em geral, razão por que a forma de todo e qualquer retângulo concreto, porque forma geral, só existe no espírito de modo imaterial; além disso, sem deixar de ser exatamente o que é, o homem recebe a forma do objeto conhecido. Ora, a faculdade que por ambos estes motivos se identifica com tal forma não pode pois ser senão, igualmente, imaterial.
E, assim como sou eu que sinto e sofro, não pode haver dúvida quanto a ser também eu que penso. O pensamento é inquestionavelmente um ato do homem individual, e, como o princípio da unidade da atividade humana é a alma, pensar é por conseguinte uma das suas operações. Se, porém, como acabamos de ver, é imaterial o pensamento, a alma executa esta operação não como executa as demais, isto é, através do corpo, mas independentemente deste — por si mesma. No seu ato propriamente intelectual, pensar, ou melhor, conhecer é uma faculdade exclusiva da alma.
Desse modo, sendo embora a forma substancial do corpo, a alma é todavia mais que isto; a sua atividade não se cinge a animar o corpo, e tem uma operação absolutamente própria: o  conhecimento stricto sensu, isto é, o conhecimento universal ou abstrato. Por isso dizia Santo Tomás que a alma humana é uma classe à parte dentre todas as formas substanciais; ela é propriamenteespiritual, não estando, ainda segundo o Doutor Comum, de todo imersa na matéria.[39]
A alma humana é a única que excede a potência da matéria; tem a seu exclusivo cargo uma operação que a matéria não pode executar. Mas, se assim é, qual nos será a origem da alma? Insista-se, para responder adequadamente a esta questão, em algumas noções metafísicas.
A matéria, ou seja, a matéria prima é pura potência, e é apta a existir numa infinidade de formas, razão por que, do ângulo inverso, se encontram tais formas em potência na mesma matéria prima. Por determinada causa eficiente, uma de tais formas passa a existir em ato, a substituir, assim, todas as que a precederam, e que agora tornam a existir meramente em potência. Eis tudo quanto pode qualquer causa eficiente (excetuado Deus): fazer passar a ato o que antes havia em potência, ou fazer voltar a potência o que antes estava em ato. 
Pois bem, já o vimos, a atividade da alma humana excede em determinado ponto o que há em potência na matéria: se quase todas as suas operações estão no campo do que, sob a ação de dada e apropriada forma, pode a matéria, na intelecção, todavia, a matéria em nada intervém. Nunca jamais a matéria, independentemente da forma que a ordene e governe, pode elevar-se ao plano do pensamento, dado ser este uma atividade absolutamente incompatível com o caráter concreto daquela. Assim, a alma humana não existe totalmente em potência na matéria, mas, se tal é fato, é porque em verdade ela, a alma humana, absolutamente não está em potência na matéria, dado que toda e qualquer forma, incluída a alma humana, é indivisível. A alma humana não poderia estar apenas parcialmente em potência na matéria; julgá-lo possível seria, consequentemente, considerá-la divisível. Sim, há em potência na matéria um sem-número de formas aptas a realizar alguns dosatos da alma humana; mais precisamente, está em potência na matéria o colaborar com a alma nas operações que por seu intermédio esta realiza. Não estando, contudo, compreendida a alma humana na potencialidade da matéria (com efeito, não existe síntese onde lhe falte um elemento), há que buscar-lhe a origem em outra fonte.
Ora, se antes de existir em ato a alma humana absolutamente não existia em potência na matéria que formava os demais corpos, é porque ela absoluta e simplesmente não existia. A alma humana, portanto, não pode ser senão uma criação direta de Deus. Já se tentou explicar-lhe o surgimento por divisão de outra alma; mas tal é impossível, pelo motivo já visto de que as formas absolutamente não se dividem, nem quantitativamente (como tal se daria, se as formas não têm extensão por si mesmas?), nem qualitativamente, dado que determinada forma perder algumas das qualidades que a constituem implicaria, pura e simplesmente, ela deixar de ser.
Cada alma humana, repitamo-lo, é criada diretamente por Deus: é produzida do nada, e portanto o seu início é absoluto. E Ele a cria para informar a matéria corporal quando esta já está disposta para recebê-la. Não se veja nisto um milagre, de modo algum; ao contrário, faz parte do plano geral da natureza, tal qual o estabeleceu e ordenou o próprio Senhor. Assim como criou os Anjos como entes eternos, e assim como criou entes materiais capazes de se transformar uns nos outros, assim cria Deus as almas humanas uma a uma, sempre que se deem as condições materiais requeridas para a sua existência.
A alma humana, portanto, repita-se, não há de gerar-se senão por criação a partir do nada, dado não existir em potência na matéria. Como devemos entender, então, neste processo, as condições materiais da produção da alma humana? Devemos entendê-las como causa ocasional desta produção, e não como causa eficiente sua.
Pois bem, a esta altura já podemos acompanhar o raciocínio tomista quanto à imortalidade da alma humana, o objeto deste texto. Ora, é o já referido fato de exceder em parte da sua atividade a potencialidade da matéria o que nos força a procurar, para a alma humana, não só uma origem diversa da das almas vegetativas e sensíveis, mas também um destino após a morte diverso do destas. Ao procurá-los, todavia, é preciso também responder a uma censura muito comum no mundo moderno: a de que o tomismo incorre em contradição por sustentar a teoria da alma como forma do corpo e, ao mesmo tempo, afirmar a imortalidade do princípio pensante. Ponhamos, então, mãos à obra.
Se dizemos que a alma é a forma do corpo, é em razão da unidade de cada ente, incluído cada ente humano, e da indubitável interdependência radical dos nossos diversos aspectos. Mas não há como negar que as formas materiais não podem existir senão pela matéria. Uma vez que a matéria que elas informavam passou a reger-se por outras formas substanciais, deixam de existir em ato, tornando a existir em potência na mesma matéria. Indissolúveis embora em si mesmas, foram porém destruídas per accidens — desapareceram as condições indispensáveis à sua existência. Assim, se dizemos que a alma dos animais não sobrevive à destruição corporal, é porque o seu psiquismo não ultrapassa suficientemente as condições orgânicas para sobreviver a elas; ao passo que, se dizemos que a alma humana é indestrutível e imortal por natureza,[40] é justamente pela nossa óbvia atividade eminente, a saber, a atividade propriamente intelectual — formação da ideia e do conceito, juízo e raciocínio — e volitiva, não sendo esta atividade, de modo nenhum, algo como um feixe de tendências orgânicas.
Ora, por uma aplicação tão simples quão inelutável do princípio de causalidade, conclui-se que a referida atividade intelectual-volitiva, conquanto condicionada extrinsecamente pelo sensível, dele difere essencialmente e pela sua própria natureza, o que não se daria se ela não fosse efeito do princípio imaterial que é a alma humana. Esta forma espiritual, como já vimos, não depende da matéria para todas as suas operações, ou seja, tem ela uma operação em que não intervém a matéria: a operação intelectual propriamente dita.[42] E por isso, ainda que privada do corpo, não se destrói per accidens como as demais formas. Além disso, não pode ela decompor-se, dado não ser composta de partes distintas como o é o corpo; ora, se a alma fosse composta de partes distintas, algo as teria de unir, e seria este algo, então, o próprio princípio de unidade, a própria forma, deixando-o de ser aquela – e assim ao infinito.[43]
Ademais, como não pode nascer senão por criação a partir do nada, a alma humana não pode desaparecer senão por aniquilamento. Só Deus o poderia fazer, só Deus a poderia aniquilar, assim como só Ele a pode criar. Fá-lo-ia? Deus não aniquila nunca aquilo que Ele próprio criou, e crer o contrário seria incorrer numa espécie de pietismo. A Sua Justiça confere a cada ente, de modo infalível, o exigido pela natureza de que Ele mesmo o dotou, donde estas palavras que Santo Tomás tomou emprestado a Santo Agostinho: “Quanto às coisas naturais, não se deve considerar o que Deus pode fazer, mas o que convém à natureza de cada uma”.[44] Se Deus deixa desaparecer as formas materiais, é precisamente, como vimos, porque elas dependem de todo da matéria, e porque convém a esta mudar de forma para assim refletir, por sua potencialidade de certo modo infinita, a infinitude de Deus e de seu poder criador – para fazer parte, enfim, dessa imago Dei que é todo o universo. É que, em verdade e stricto sensu, nenhuns entes materiais são aniquilados — elestransformam-se. É por isso que a alma vegetal e a alma animal são formas que, propriamente, tampouco se aniquilam com a transformação da matéria de que são princípio; como que continuam a existir “dissolvidas” nos novos corpos, como potência. A alma humana, porém, é propriamente imortal.
Mas resta uma questão tão delicada quão complexa: Que espécie de vida pode ter a alma humana quando separada do corpo, sempre de acordo com o que exige a sua mesma natureza? Como vimos, em todas as atividades vegetativas e sensíveis requer-se o corpo, razão por que elas hão de cessar inteiramente na alma separada. A inteligência, todavia, como igualmente vimos, é independente da matéria, no seu ato sumo de conhecimento, assim como correlativamente também o é a vontade, no seu ato livre.[45] Desse modo, pois, a atividade cognitivo-afetiva pode continuar a exercer-se na alma separada do corpo — a vida da alma separada do corpo após a morte é vida da inteligência. Isto todavia ainda não resolve de todo o problema, porque, se de certo modo já se disse o que é a vida da alma separada do corpo, ainda porém não se disse como é esta vida. Ora, na vida presente as ideias mediante as quais a inteligência conhece o seu objeto têm origem primeira nos sentidos, e necessitam do concurso prévio da imaginação e da memória; e, como tudo isto depende do corpo, e como portanto não se pode exercer com a dissolução deste, as ideias que a alma dele separada é capaz de conhecer hão de ter origem diversa. E como não seria assim se, mudado o modo de ser ou existir, é absolutamente natural que mude também o modo de operar?
A alma separada do corpo opera naturalmente da seguinte maneira:[46]
1) ela conhece por espécies provindas do influxo da luz divina;
2) conhece-se a si mesma por si mesma;
3) conhece perfeitamente as demais almas separadas, e imperfeitamente os Anjos;
4) não pode conhecer o que se passa neste mundo “sublunar”.[47]
Não obstante, e se é certo que nenhuma destas maneiras de conhecer ultrapassa a capacidade ou potência da inteligência humana, e se, ademais, por serem conhecimento direto do inteligível, sem concurso das coisas sensíveis, podemos dizê-las em si mesmas mais perfeitas do que o conhecimento por abstração que estudamos mais acima, elas, no entanto, são para a própria alma humana menos perfeitas. Por que isso? Exatamente porque, “para que pudessem ter um conhecimento perfeito e direto das coisas, [as almas humanas] foram constituídas de modo que se unissem naturalmente aos corpos”,[48] razão por que, separadas dos corpos, verão de modo menos claro do que, quando unidas aos corpos, abstraem as ideias do sensível.[49]
Permanece, todavia, uma dificuldade quanto às almas separadas do corpo: Como individuá-las? Sim, porque se é impossível haver dois entes imateriais distintos que pertençam à mesma espécie,[50] poderia parecer igualmente impossível distinguir entre si as almas humanas após a separação do corpo. Sucede porém que as almas humanas, ao contrário dos Anjos, não são formas espirituais puras: o fato de terem animado corpos entre si distintos é já o bastante para diferenciar entre si as almas humanas. Elas, portanto, são individuadas por sua relação essencial com certo e determinado corpo – o que o foi o seu.
Que foi o seu? Não, não somente — também o corpo que tornará a ser o seu. Que nos veio conseguir o Verbo, que, encarnado, habitou entre nós? Pelo mérito único da Sua Paixão e Morte na Cruz, e pela eficiência da Sua própria Ressurreição, veio-nos conseguir um destino imensamente mais glorioso até do que a vida imortal no Jardim do Éden: a visão amorosa da Face de Deus, com a alma reunida ao corpo ressuscitado. Ora, apesar da sua real dignidade, a alma humana não tem direito natural a tal condição, e é incapaz de por si mesma conhecer a essência de Deus;[51] para que isto ocorra, será preciso que Deus mesmo nos exalte a alma por uma luz toda especial – a luz da glória –, ou seja, por pura obra e dom gratuito da Sua Bondade.
Retomemos agora, para concluir, a delicada questão da alma humana com respeito ao corpo. Como nos é dado conhecer, se a alma soube não afastar-se de Deus nesta vida, ela gozará a posse d’Ele já antes da ressurreição (e na maioria dos casos após um tempo de provas e purificação no Purgatório). Pois bem, em sentido estritíssimo este estado da alma separada é, de per si, superior e preferível à nossa condição terrestre pós-expulsão do Paraíso; mas o corpo, conquanto após a Queda se tenha transformado em ocasião de lágrimas e de pecado, o corpo, repito, não é nunca uma prisão[52] — sempre, e ainda na terra após a Queda, ele é parte da pessoa humana total. Por isso, ou seja, precisamente por esta perspectiva hilemórfica,[53] a ressurreição dos corpos é uma das peças-chaves da restauração final de todas as coisas. “Inconcebível numa visão hiperespiritualista do mundo (por que tal arbitrariedade da parte de Deus, após esta libertação que é a morte?)”, a ressurreição, como escreve com toda a justeza e precisão Louis Jugnet, “guarda a sua gratuidade, mas torna-se perfeitamente lógica num espiritualismo como o que acabamos de expor. (Definição do IV Concílio de Latrão, que não faz senão retomar neste ponto o ensinamento apostólico; cf. Santo Tomás, Sum. Theol.Suppl., q. 77-86 [...].)[54] Igualmente, torna-se inteligível nesta concepção do homem tudo o que concerne à transmissão da graça através dos sinais sensíveis (sacramentos e sacramentais) e ao papel da liturgia [...], com o que se escandaliza um racionalismo tacanho, falto de apreender a riqueza e a exata correspondência da natureza humana.”[55]


[1] Filósofo grego do século V a.C. Ele fazia consistir o ser numa infinidade de átomos. Ria-se continuamente da loucura humana, e é não raro oposto a Heráclito, a quem o mesmo motivo fazia chorar.  
[2] Segundo Descartes, a alma é “a coisa pensante”, e o corpo “a coisa extensa”, atuando a primeira sobre a segunda através de um ponto da glândula pineal (o conarium)!... “Seu discípulo independente Regius via no homem uma unidade acidental, e, apesar das invectivas do mestre, parece efetivamente que ele é aqui mais cartesiano que o próprio Descartes. — Spinoza, por seu turno, considera que a união da alma e do corpo em Descartes é mais obscura que as mais obscuras entidades escolásticas, e busca alhures (paralelismo). Atitude também insatisfeita com o cartesianismo ortodoxo encontra-se em Leibniz e Malebranche” (Louis Jugnet, La pensée de Saint Thomas d’Aquin, Paris, Nouvelles Éditions latines, 1999, p. 92, n. 28).     
[3] Vê-se claramente por aí que, na filosofia aristotélica, “forma” absolutamente não é sinônimo de “figura”, como na linguagem corrente (como, por exemplo, em “uma peça de forma triangular”), mas expressa uma fonte de ser e de modo de ser.
[4] Por entrar em composição com um ser real, “ela não é uma simples possibilidade lógica, uma pura abstração idealista que não fosse fonte de absolutamente nada” (Louis Jugnet, op. cit., p. 85).  
[5] Entenda-se “estado atual” no sentido metafísico, ou seja, como “estado de ato”. Já o veremos.
[6] Apresentou-se aqui a prova por um aspecto decisivo. Mas também se pode, como o faz Louis Jugnet (in ibid., pp. 85-86, n. 18), partir das mutações que redundam numa síntese química de tipo não vivente. “O acetileno é diverso do carbono mais o hidrogênio. O ácido clorídrico é diverso do cloro mais o hidrogênio. Pouco importa que a microestrutura dos componentes seja ainda reconhecível, em certo sentido, no composto, porque a fisionomia de conjunto (se nos podemos exprimir assim) do corpo considerado é nova, se o novo agrupamento de propriedades manifesta ao filósofo, como dado primeiro e irredutível, a presença de uma natureza nova. Não é preciso que o detalhe mesmo das propriedades seja oposto ao precedente. [...] — A maneira como um composto hilemórfico ‘se altera’ e dá nascimento a um corpo novo (vivente ou não vivente, o esquema é o mesmo em ambos os casos) foi perscrutado com diligência e lucidez pelos autores da escola tomista, [a começar pelo] próprio Santo Tomás (Comentário ao “De generatione et corruptione” de Aristóteles, por exemplo) [...]. Contentemo-nos [aqui] com dizer que esta análise guarda todo o seu valor filosófico quaisquer que sejam as ilustrações científicas discutíveis dadas pelos [mesmos] escolásticos [...].”
[7] Em filosofia, chama-se antinomia ao conflito entre duas asserções demonstradas ou refutadas aparentemente com igual rigor. Já aporia vem do grego aporía, que quer dizer propriamente “ausência de passagem ou de meio”, ou “embaraço, dificuldade, necessidade”; em Aristóteles, significa “dificuldade por resolver”, ou, mais precisamente, “apresentação de duas opiniões contrárias e igualmente racionais em resposta a uma mesma questão” (Octave Hamelin, Systeme d’Aristote, Paris, publié par L. Robin; Vrin, “Bibliothèque d’Histoire de la Philosophie”, 1985, p. 233).
[8] E isto desde a Antiguidade grega. De um lado, dizia Parmênides que qualquer mudança é impensável, contraditória, absurda; do outro lado, abandonava Heráclito a identidade, afirmando que não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio (o que levaria a pensar, como de fato sucedeu, que não nos podemos banhar num mesmo rio nem sequer uma vez, pois que nada permanece nem nunca propriamente é).
[9] Louis Jugnet, ibid., p. 109.
[10] Veja-se o que diz Aristóteles (in Metafísica Θ, 3, 1.046 b 29–1.047 a 4) contra o céptico Protágoras: “Pretender que não se tem realmente potência senão quando se atua (de fato), e que lá onde não se atua já não há potência, seria sustentar que aquele que não constrói não pode construir, ou que já não há construtor a partir do momento em que ele não constrói, ou, enfim, que o artista que cessa de exercer a sua arte já não a possui. Mas, então, por que aquisição súbita pode pôr-se ele a trabalhar?” É a resposta definitiva à negação da potência e todas as absurdidades que dela decorram.
[11] O mesmo se diga com respeito ao par essência/ser, o qual, porém, não se pode estudar nos limites deste texto.
[12] Obviamente, perfeição não no sentido moral, mas no metafísico.
[13] Louis Jugnet, ibid., p. 111.
[14] Só não o estará se criada ex nihilo, como o Universo na origem e a alma humana em cada concepção, como veremos.
[15] Isto condena radicalmente todo o panteísmo evolutivo, e particularmente o teilhardismo e suas variações modernistas. Condena, por outro lado, e igualmente, as visões gnósticas (como a guénoniana), segundo as quais acima do manifestado está o Não-manifestado, a divindade Potência, o deus Nada. Cf. Santo Tomás, In XII Metaph., lect. 5; Contra Gentiles, I, c. 16, e Sum. Theol., I, q. 2, a. 3.
[16] Francisco Suárez, jesuíta espanhol (Granada, 1548-Lisboa, 1617), professou uma teologia eclética, soi-disant inspirada em Santo Tomás de Aquino. É autor importante e prolífico, sim, e entre as suas principais obras se contam Disputationes metaphysicæ, uma Defensio fidei (1613, contra Jaime I da Inglaterra) e extensos comentários da Suma Teológica. Mas também foi causa de numerosos desvios no pensamento católico.
[17] Refiro aqui o par essência/ser somente à guisa de ilustração, porque, como já disse, não o poderei tratar neste texto.
[18] Este princípio reza que “algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo nem sob o mesmo aspecto”.
[19] “A existência [o ser], em particular, não implica em si mesma nenhuma limitação. Se não é recebida e limitada por uma potência, ela é infinita e é Deus. Mas só Ele está neste caso. Nos entes finitos, sucede o inverso [...]” (Louis Jugnet, ibid., p. 113).
[20] Cf. de Santo Tomás De ente et essentia, c. 5; In I Sent., d. 43, q. 1, a. 1; Q.d. de veritate, q. 2, a. 2, ad. 5; Quodl., III, q. 2, a. 1; Sum. Theol., I, q. 7, a. 1; Compendium theologiae, c. 18; etc.
[21] Veja-se o caso da forma substancial, que é ato com respeito à matéria que ela faz ser isto ou aquilo. Mas o par forma/matéria, que constitui a essência dos seres corporais, está ainda em potência com respeito ao ser ou existência.
[22] Isto remete a outro problema que não se pode tratar aqui: o da individuação da substância.
[23] Para a vida segundo Santo Tomás, cf. Sum. Theol., I, q. 18, a. 1 a 3, e q. 78, a. 1 e 2; In II De Anima, lect. 1 a 5; etc.
[24] Louis Jugnet, ibid., p. 89.
[25] Ou seja, a produção ou origem do embrião, chamada também embriogenia.
[26] Ou seja, que tem determinado fim ou finalidade.
[27] Calcula-se que, dadas as treze condições requeridas para que o olho funcione, há 999.985 possibilidades contra 15 de que falte ou falhe uma daquelas condições. E, contudo, não é a cegueira nem as más-formações oculares o que se impõe como regra — todo o contrário. O matemático é aqui amplamente suplantado pelo biológico, pelo vital, pelo que caracteriza essencialmente a vida.
[28] Quanto a serem os vírus-proteínas intermediários entre o inorgânico e o orgânico — verdadeiro cavalo de batalha dos antifinalistas —, veja-se o estudo de Hansjurgen Standinger (in Universitas, Stuttgart, setembro de 1947, cit. por Louis Jugnet, ibid., p. 90, n. 25), que o nega peremptória e fundadamente. E, se em 1928 o professor Needham, biólogo de Cambridge, afirmava (vide Louis Jugnet, idem): “Atualmente, a zoologia deriva da bioquímica comparada, e a fisiologia da biofísica”, já em 1941 se retificava: “A organização biológica não pode reduzir-se a uma organização bioquímica, pois nada pode reduzir-se a outra coisa”.
[29] No homem a estimativa está sujeita ao intelecto, e por isso mais propriamente se chamacogitativa.
[30] Como escreve ainda Louis Jugnet (in idem, p. 91), “seria absurdo dizer que diante de um chicote brandido um rapazinho foge por ter medo, enquanto um animal faria o mesmo por mera reação mecânica, como o supõe o insustentável paradoxo cartesiano dos animais-máquinas”.
[31] Acerca disto, vide Santo Tomás, Sum. Theol., I, q. 75, a. 3; etc.
[32] Lembremo-nos sempre de que é o composto hilemórfico o que atua e padece, e nunca a forma nem a matéria isoladamente.
[33] Na verdade, como veremos mais adiante, tanto a alma como o corpo dos animais não seaniquilam de fato, não retornam ao puro nada.
[34] Cf., para os Anjos, o Tratactus de substantiis separatis de Santo Tomás de Aquino (publicado no Brasil pela Sétimo Selo com o título Sobre os Anjos); etc.
[35] Sum. Theol., I, q. 76, a. 6, ad 1.
[36] Cf. Sum. Theol., I, q. 76, a. 8.
[37] Cf. Sum. Theol., I, q. 76, a. 3.
[38] Sum. Theol., I, q. 76, a. 4, ad 2.
[39] Cf. Sum. Theol., I, q. 76, a. 1, corpus. — Chamamos materiais às demais formas não porque nelas, nelas mesmas, haja matéria (como já visto, a forma é um princípio precisamente diverso do da matéria), mas porque a requerem para sua mesma existência e para todas as suas operações. Em outras palavras: não excedem a potencialidade da própria matéria.
[40] E não por nenhuma derrogação das leis da criação, por nenhum milagre, insista-se.
[42] Para evitar complexidades ainda maiores e impossíveis de resolver neste texto, não posso insistiraqui na potência volitiva da alma humana.
[43] Como a alma, segundo estas palavras precisas de Louis Jugnet (in ibid., pp. 93-94), “enquanto espiritual, evidentemente não é afetada de nenhuma composição física, ela é inacessível a toda e qualquer composição, sendo a morte algo próprio do múltiplo e do composto enquanto tais. A imortalidade da alma [humana] é um corolário da sua espiritualidade, a qual se induz simplesmente da observação [...] da atividade intelectual. Dizemos bem: induz-se. A filosofia aristotélica e tomística não reconstrói o universo ‘more geometrico’, à maneira spinozista, a poder de definições a priori, de deduções racionais puras; ela supõe sempre um dado de experiência. Falando propriamente, nem empirismo nem racionalismo, aqui como alhures.” Cf. Santo Tomás, In XII Metaph., lect. 3; Sum. Theol., I, q. 75, a. 6; Q.d. de anima, a. 14; etc.
[44] Sum. Theol., I, q. 76, a. 5, ad 1.
[45] Vide, acima, nota 42.
[46] Cf. Sum. Theol., I, q. 89, in totum.
[47] Faz-se abstração aqui do fato de que as almas bem-aventuradas, ou seja, aquelas que pela luz da glória já se tornaram “deiformes”, já veem a Deus em sua essência e, portanto, a tudo em sua Causa, como efeito d’Ela. São como anjos. Cf., para isto, Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol., I, q. 89, a. 8, corpus.   
[48] Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol., I, q. 89, a 1, corpus.
[49] Consigne-se ainda que, como mostra Santo Tomas (Sum. Theol., I, q. 89, a 6, in totum), a parte intelectiva do habitus da ciência adquirido nesta vida permanecerá necessariamente na alma separada. Se assim é, quanto mais se habituar ela, nesta vida, a ver as coisas superiores, mais lhe estará facilitada a compreensão do que, separada, lhe for dado conhecer. Pois era isto mesmo o que expressava, ainda que de maneira muitíssimo confusa e em meio a numerosos equívocos, toda a tradição de ascetismo intelectual que se estendeu dos pitagóricos a Aristóteles, com proeminência noBanquete de Platão. Como já se disse, uma coisa era o esforço heroico da alma humana para elevar-se filosoficamente, antes de Cristo e sem os dados da Revelação, ao conhecimento natural das coisas divinas, conhecimento este perdido ou grandemente dificultado com o pecado original, e outra, de todo contrária, é a queda que significa o trabalho de destruição da doutrina perene, iniciado já antes até da Idade Média e prosseguido até hoje por todos os idealismos, materialismos e relativismos. A filosofia da Antiguidade greco-romana está para a filosofia pós-Santo Tomás assim como, mutatis mutandis, o antigo povo eleito está para o atual judaísmo: se o antigo povo eleito se curvava diante da Revelação, a filosofia greco-romana se curvava diante da realidade enquanto inteligível; e, se os judeus cujo véu do templo se rasgou não reconheceram e seguem sem reconhecer o Messias, a filosofia posterior ao Doutor Comum nega-se, por variadas formas, a reconhecer o real enquanto real, ou seja, enquanto inteligível, e nega-se a vê-lo sob as luzes do Logos, que, encarnado, habitou entre nós.
[50] Assim, cada Anjo é como uma espécie própria e à parte.
[51] Não podemos conhecer naturalmente a Deus e alguns de seus atributos senão a posteriori (ou seja, pelos seus efeitos na criação) e de modo analógico.
[52] Digo-o metafisicamente, e independentemente da expressão de muitos místicos, como Santa Teresa d’Ávila e o próprio São Paulo. Ambas estas maneiras de ver são absolutamente justas, embora, obviamente, não pelo mesmo aspecto.
[53] Nunca nenhum Concílio contradisse esta perspectiva, muito pelo contrário. Veja-se, por exemplo, o Concílio de Viena (1311-1312), que condena como herético quem quer que negue ser a alma a forma do corpo humano. E, conquanto esta definição não canonize explicitamente a tese tomista, ela porém se opõe inflexivelmente a qualquer dualismo que destrua a unidade do homem.
[54] Cf. também, muito especialmente, Santo Tomás de Aquino, Compendium theologiae, liber 1, capita CLI-CLII, onde se mostra que, para a perfeita beatitude, a alma deve reunir-se a seu corpo na ressurreição, e que esta é perfeitamente conveniente.
[55] Louis Jugnet, ibid., pp. 94-95.

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